terça-feira, 26 de abril de 2011

Devaneios de uma caminhada noturna

Dizem que todos tem um dom sobrenatural. Muitos tem visões do futuro. Alguns enxergam espíritos do que parecem ser pessoas mortas. Eu sinto como se estivesse despertando aos poucos o meu dom, por anos guardado, prestes a entrar em erupção mudando todo o curso da minha vida: Eu vejo pessoas invisíveis.

São pessoas vivas, talvez visíveis para uma ou outra pessoa que por obra do acaso se cruzam com uma dessas pessoas. Passam por momentos de tensão, talvez, até que o esquecimento devolve a invisibilidade aos primeiros indivíduos. São pessoas invisíveis aos olhos da sociedade. Perambulando sob o escaldante sol ou se esquivando do frio na escuridão. Eles estão lá, embora as grandes massas os ignoram como se estivessem camuflados na paisagem. Quem os percebe evita mirar em seus olhos, a fim de seguir seu trajeto intacto. Sim, eles estão lá, e eu os vejo.

E eis que cada esquina é uma história. Cenas, como em um filme, são remontadas a cada cenário que a escura cidade exibe. E um trajeto rotineiro de volta para casa à noite se torna um livro de histórias completo. Vejo as fezes no chão. Não são de cachorro, nem de outro animal. Alguém cagou ali. Alguém que a humanidade não nomeia. Cada objeto é uma história. Uma peça de carro jogada ao chão à noite é apenas o início do nosso flashback reverso que remonta toda uma história do cotidiano do mecânico que ali esteve quando ainda era claro. Cada pichação revela um adolescente em algum passado remoto, que talvez hoje seja um adulto pensando o quão idiota era quando fazia pichações no passado. Embora aquela pichação, no momento em que foi feita, estava carregada de um significado imenso, que eu não faço idéia do que era.

E lá estava eu voltando para casa, enxergando pessoas invisíveis. Muitos estavam lá na hora. Muitos eram apenas personagens das histórias que os rastros contavam. Mas eram muitos, em apenas um pequeno trecho. Um bêbado sendo carregado na saída de um boteco. Um problema grande para os homens que o carregavam ali na hora. Esses homens ficariam com essa imagem talvez pelo resto da noite. Mas completamente invisível para a sociedade. Esse bêbado simplesmente não existe para o mundo. Eu o vejo.

Um pouco mais à frente, ruínas do que há não muito tempo foi uma escola. Uma escola que passava mensagens, expostas à todos de fora através de desenhos e frases pintadas por alunos nos muros. Hoje só há um monte de terra e um orelhão que nem imaginava que tinha lá dentro. Logo pensei na pessoa que educava aquelas crianças. Tanta dedicação e arte não foram em vão, apesar das ruínas parecerem cruéis. As crianças se espalharão pelo mundo com um conteúdo a mais, com algo de valor. Logo à frente, vejo um bar, com jovens que parecem ser o oposto do que acredito ser o o futuro daquelas crianças. Jovens vazios e sem conteúdo, todos iguais, que não enxergam os invisíveis. Mas eis que encaro uma das jovens e vejo que talvez eles sejam sim aquelas crianças no futuro. E aí já não sei quem tem conteúdo ou não, e de repente os próprios jovens daquele bar parecem invisíveis. Não precisa ser uma minoria excluída para ser invisível. A própria maioria engole os seus seguidores.

Eu olho para os peças-rara urbanos e eles olham para mim. Eles gostam de mim. Muitos não compreendem e julgam a interação com essas pessoas como perda de tempo. Mas eu não sei. Eu realmente não sei o que será de mim quanto à isso. Só sei que a cada dia essas pessoas esquecidas invadem mais e mais a minha vida. Minha história, ainda que ilusoriamente, vai se misturando com a deles. Não se se isso vai continuar crescendo, se me levará a algum lugar. Desconheço o meu futuro. O que eu sei agora é que eu descobri em mim um dom: Eu vejo pessoas invisíveis.

2 comentários:

  1. lindo... e romantico... não sei o que pensar... nao descordo, na verdade isso pra mim sempre foi normal desde pequena, tentar enxergar a todos... ontem mesmo no onibus reparei um homem andando com uns sacos pela rua... aih fiquei olhando e pensando no que tinha acontecido pra ele chegar naquela situação... aih enquanto eu estava olhando reparei que a maioria das pessoas estavam olhando tbm, e muitos até conversando sobre ele... acho que a gente aprende a não olhar... bom, fico feliz pelo seu texto, é muito bom pretender me casar com uma pessoa que tenha esse dom...

    ResponderExcluir
  2. É realmente um dom enxergar estes "seres" invisíveis.Precisa de generosidade, que gera respeito e pode levar ao amor, até... Mas é bem raro, hoje em dia. Jesus disse que seus discípulos seriam conhecidos pelo amor. Sei que este é o seu dom. Bjo grande
    Valéria

    ResponderExcluir